top of page

Postagens por data:

Ivo Fernando da Costa

Se queres a paz, prepara-te para a guerra

Como encarar o ano novo à luz do pensamento clássico


Hesíodo, no início de sua Teogonia, nos narra assim a origem dos deuses gregos:


“Essas coisas anunciai-me desde o princípio, vós, Musas que habitais a morada do Olimpo, e contai-me qual deles primeiro veio a existir. Na verdade, no início o Caos veio a ser, mas depois a Terra de amplos seios, o alicerce sempre seguro de todos os imortais que ocupam os cumes do nevado Olimpo, e o sombrio Tártaro, nas profundezas da vasta Terra de amplos caminhos, e Eros (o Amor), o mais belo entre os deuses imortais, que enfraquece os membros e subjuga a mente e os sábios conselhos de todos os deuses e de todos os homens dentro deles.
Do Caos surgiram o Érebo e a Noite Negra; mas da Noite nasceram o Éter e o Dia, que ela concebeu e deu à luz em união de amor com Érebo. E a Terra primeiro gerou o Céu Estrelado, igual a si mesma, para cobri-la por todos os lados e ser uma morada sempre segura para os deuses bem-aventurados.”

Um tema recorrente na mitologia e no imaginário grego é a ideia de que conceitos e realidades contrárias estão, de algum modo, interligados e implicados: céus e terra; dia e noite; amor e ódio; guerra e paz; caos e ordem. Por meio dessas imagens e alegorias, o homem antigo expressava algo característico da experiência humana: a realidade se apresenta ao intelecto humano como um enigma — algo aparentemente desarticulado e sem sentido, mas que pressupõe uma ordem, um logos. Diante do caos, nosso intelecto busca desesperadamente a chave interpretativa que revele a harmonia na diversidade.


Essa postura contrasta profundamente com a visão de mundo contemporânea, que nos insere em uma realidade de dicotomias: patrão versus operário; branco versus negro; homem versus mulher; professor versus aluno. Nesse contexto, já não buscamos a harmonia ou a contribuição das qualidades individuais e particulares de cada um em direção a um bem comum e superior. O único caminho proposto é o progresso por meio da revolução — isto é, da aniquilação do seu oposto.


Esse progressismo revolucionário traz consigo outra consequência: a rejeição da tradição — algo que os antigos chamariam de impiedade. De fato, há uma ligação estreita entre os conceitos de tradição e piedade. A piedade, em seu significado mais originário, refere-se a uma virtude ligada à justiça, que nos leva a dar a Deus, à pátria e à família aquilo que lhes é devido. Ela nasce da consciência de que tudo o que somos recebemos de outros. Dessa percepção brota uma atitude não de conflito, mas de gratidão, escuta e veneração.


O ser humano avança e amadurece não de forma linear, mas em um movimento semelhante a uma espiral, aprendendo com o passado e dele se inspirando. Daí a importância dos ciclos. Em meio ao vendaval das mudanças constantes da vida, precisamos nos agarrar a esses pontos de estabilização que nos permitem avaliar a rota, rever o que já foi feito, inspirar-nos nos grandes ideais e, assim, continuar avançando.


O final e o início de um novo ano é, por excelência, um desses momentos cíclicos de passagem. Os romanos, inclusive, possuíam uma divindade que ilustrava essa realidade: Ianus. Etimologicamente, o termo possui várias conexões. Ele pode estar ligado ao verbo hiare (estar aberto), remetendo ao Chaos, que também significa "abertura" ou "vazio primordial": aquilo que surge do Chaos. Pode estar associado também ao verbo ire (ir), reforçando a ideia de passagem, movimento, transição. Ou, ainda, à raiz indo-europeia dey, que significa "brilhar", de onde derivam palavras como dies (dia), Diovis (Júpiter), deus e Diana (a lua personificada como divindade). Da mesma raiz derivam as palavras ianua (porta) e ianuarius (janeiro).


Assim como na cosmologia de Hesíodo, partimos do Chaos para a Terra (o lugar das coisas mutáveis) e nos elevamos às realidades celestes, que são eternas!


Em linha com seu significado etimológico, Ianus era, para os romanos, um deus primordial, associado à origem do cosmos e à transição do caos para a ordem. Também era o deus das transições e dos ciclos que se encerram e se iniciam.


Costumava ser representado com duas faces voltadas para direções opostas: uma anciã, olhando para o passado, e outra jovem, voltada para o futuro. Esse simbolismo reforça a ideia de que só podemos avançar para o futuro levando em conta a tradição. Aristóteles formaliza brilhantemente essa intuição do imaginário antigo ao afirmar, na Metafísica, que é próprio do sábio ordenar.


Nesse contexto, Santo Tomás de Aquino oferece um belo sermão, intitulado “Céu e terra passarão”, que dialoga com essa visão. O homem é chamado a se elevar da terra para o céu, ou seja, a passar de um estado de injustiça (impiedade) para um estado de santidade (justiça). Nesse sentido, o homem justo é aquele que:


“[...] tendo em vista a breve descrição da maravilhosa elevação do homem celestial no substantivo céu, o justo e merecido desprezo pelo homem mundano no substantivo terra, e a diferença na vida de ambos em relação ao verbo passar, empenhemo-nos em renunciar às coisas terrenas e amar as coisas celestiais (cf. Cl 3,1), de tal maneira que desprezemos a vida mundana e abracemos a vida celestial, para que possamos passar do labor ao descanso (cf. Hb 4,10), do mundo à glória”.

Tudo isso nos ensina valiosas lições sobre como vivenciar o ano novo que se aproxima! Nossa vida está em constante mudança em meio ao caos político, social, cultural, moral... para sobreviver em meio a esta tempestade devemos ancorar nossa barca na rocha da tradição não permitindo que nossa vidas sejam levadas pelas ondas do mundo.


Tudo isso nos ensina valiosas lições sobre como vivenciar o ano novo que se aproxima! Nossa vida está em constante mudança, imersa no caos político, social, cultural e moral. Para sobreviver a essa tempestade, devemos ancorar nossa barca na rocha da tradição, evitando que nossas vidas sejam arrastadas pelas ondas do mundo.


No entanto, isso não é suficiente. É comum, no início de um novo ano, desejar prosperidade. Mas prosperar é impossível sem uma meta que nos guie, sem um autêntico norte que nos leve ao bom termo. Platão dizia que o sábio é como o capitão que, olhando para as estrelas, conduz sua barca. A tradição e a virtude da piedade nos estabilizam, mas é preciso guiar e dar sentido à nossa vida à luz das verdades eternas.


No ano novo, também desejamos paz. É interessante notar que o templo de Ianus, localizado no Fórum Romano, permanecia aberto em tempos de guerra e fechado em tempos de paz. Recorria-se ao deus Ianus em tempos de conflito, buscando uma transição do caos para a ordem. Por outro lado, o templo era fechado em tempos de paz para simbolizar a necessidade de preservar a ordem conquistada — ou seja, a tradição.


Isso nos ensina que a paz não é o mero resultado de um consenso social ou da simples ausência de conflito. Ela não é fruto de uma atitude passiva. Como dizia Santo Agostinho, “a paz é a tranquilidade da ordem”. É a serenidade que nasce da certeza da verdade, algo que exige busca e uma postura proativa. É, em última instância, a tranquilidade de uma vida em conformidade com a verdade, algo que demanda virtude.


Por isso, com razão diziam os romanos: “Se queres paz, prepara-te para a guerra!”

 

Comments


Encontre outras postagens sobre:

bottom of page